sábado, 7 de agosto de 2010

Relatos de um sábado sem costela

Hoje, após ler umas crônicas, me deu uma bruta vontade de escrever algo, sem compromisso nenhum. Sem saber o tema ainda, sem nenhuma ideia, diante de um relato de um amigo, lembrei de uma  reles passagem, de um dia como outro qualquer, nesses em que se levanta e se faz o de sempre. Dias como os seus, ou vai dizer que os seus dias são uma constante aventura no desconhecido?

Nesse dia, fui trabalhar às 5 da matina, como era rotina na época, por isso, às 11 da manhã, meu estômago me jurava passar dás 3 da tarde, meu cérebro ignorava os ponteiros e o relógio digital da balança que tresloucadamente pesava as frutas e verduras de um terrível e infernal sábado num mercado de uma grande rede mundial de hipermercados escravistas. Clientes gritavam  e reclamavam, chefes e pseudo-chefes em fúria, descontavam toda sua frustração de sub-empregados nos funcionários terceirizados, como eu. Mas minha fome não tem patrão e desandou a pedir alimento.

Nesse dia, já cansados da comida mal feita, o sub-alimento que é servido na pseudo-cozinha que só aquecia a refeição feita anteontem por uma empresa terceirizada para os sub-empregados terceirizados e pseudo-donos de setor. Nós discutíamos se almoçávamos ou comíamos algum pseudo-alimento com cara de fast-food.  Eu, juntamente com mais dois colegas, decidimos que nós, que carregávamos o setor de horti-fruti nas costas, merecíamos algo melhor: gastaríamos o que não podíamos do nosso sub-salário para comer costela assada no bar da esquina, que era humilde e sujo - como nós estávamos - mas possuía uma comida melhor e, simbolicamente, mais barata do que comer em um refeitório de uma empresa escravista.

Interrompendo nossa confabulação sobre a glória de nosso almoço, a voz dos clientes enfurecidos querendo ir para casa, comer a comida feita pelas próprias mãos, seus legumes cozidos pela mamãe, suas saladas saudáveis cheias de verdes frescos no sábado glorioso de descanso e gozo, que era tão somente deles. Queriam soluções para todos os problemas que os afligiam, queriam que nós, funcionários, resolvêssemos sua falta de dinheiro para comprar o que não precisavam e lhes fizéssemos o favor de baixar o dólar, que encarecera algumas frutas; queriam que os levássemos no colo e organizássemos o mercado de maneira que nada e ninguém os impedisse do delírio de suas compras. Pareciam possuídos por um espírito, olhavam obcecadamente para as gôndolas e esbarravam em tudo, a tudo questionavam, se digladiavam por um lugar na fila, por uma fatia da melancia recém cortada... A visão que tenho de um inferno é feita de clientes em um dia de sábado, em um mercado de grande rede.

E nessa mora toda, minha saliva, língua e todas as outras partes do sistema digestivo primário pediam com veemência a costela assada que, aquela hora, era meu único objetivo na vida.
Fizemos gestos mostrando um para  o outro que era chegada a hora de burlar as ordens do pseudo-encarregado e irmos matar nossas verdadeiras lombrigas. Mais algumas demoras até sair da grande senzala, a liberdade tinha cheiro de costela assada, e "na brasa", como repetia Rodrigo, hoje pseudo-chefe na mesma rede.

 Ao chegarmos à esquina, vimos o botéco vazio, algumas moscas rodeavam a churrasqueira, lambendo a gordura que sobrara da costela que era pra ser nossa, porém, pessoas com empregos de horários mais justos, chegaram por volta do meio dia, e almoçaram, comeram com bocas salivantes  a carne da costela mais suculenta do melhor boi. E nós, às 2 da tarde, não encontramos nada, além das moscas e de um funcionário que disse com voz fúnebre e em bom brasileirês: "acabarô os almoço".

Não havia um plano B, mas havia uma churrascaria há algumas esquinas dali. Caríssima, limpa e grande. A fome, de costela, chegou-nos a cegar a mente e não vimos nenhum empecilho em comermos naquele soberbo estabelecimento, mesmo uniformizados, com as mãos ainda grudentas de melancias e aipins. Caminhamos até lá. Fomos recebidos por uma enorme fila de sábado - o dia semanal dos clientes insatisfeitos. Criticavam a fila, as mesas reservadas, o estacionamento, o mercado. Voltamos como o cão arrependido, sem nem o osso roído, da nossa tão almejada costela - na brasa!

Desolados, com fome e com pressa. Estava acabando nosso intervalo. Vimos a barraca do pastel, nossa única opção às duas e meia da tarde. Como um oásis pobre no deserto da nossa hora de almoço, nos sentamos à mesa branca de PVC e pedimos o pastel da promoção, o de ovo. Pastel de ovo não se assemelha em nada com costela, de modo que nossa fome o recusava e ele parecia estar azedo, cru e frito em óleo velho. Comemos rindo de nossa condição, éramos o verdadeiro retrato dos empregados de um hipermercado: ferrados, mal pagos e alegres.

Ao terminar nossa refeição, a liberdade já havia acabado e, atrasados, corremos para o dever, onde já devíamos horas trabalhadas. Ao entrar, o cheiro sofrível do refeitório nos fez sentir orgulho do pastel que digeríamos. Já não havia mais comida alguma por lá também, mas o cheiro era forte e alguns funcionários, pseudo-alimentados, estufados e sonolentos, ainda palitavam os dentes gordurosos. Será que ainda restaria um gole daquele suco de água de caixa, com gosto de açúcar? Pensamos juntamente e caminhamos até o refeitório, terminar nosso coquetel com o delicioso néctar industrial. Na entrada,  a placa do cardápio do almoço ainda permanecia esquecida. Nela, em letras garrafais se lia nitidamente: CARNE DO DIA: COSTELA ASSADA.


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Ramones - Pet Sematary