terça-feira, 29 de março de 2016

Reticente

Vem e coloca sal no meu suco.
Age como são quando está maluco.
Despeja fel em minha sopa.
Risca de caneta minha roupa.
Enche de areia meu calçado.
Deixa o chão da sala encharcado.
Rasga meus livros todos.
Me faz escrever textos tolos.
Se embrulha de estardalhaço.
Amarra nos postes meus cadarços.
Diz que é verdade o que nem sente
Para terminar assim reticente...

segunda-feira, 14 de março de 2016

(C)oração de mãe

Recolhe-me em teus braços novamente. Apaga meus erros, me traz o chá. Me traz a comida requentada. Põe na mesa de novo aquele arroz, branco e duro. Junta aquele feijão e faz aquela oração. Agradece o pão. Faz-me acreditar de novo, me diz que Papai do Céu cura, me diz que Deus está lá e nos olha com seus olhos enormes que tudo veem. Mas me diz uma vez a cada meia hora, me diz com a mesma esperança em que eu acredite. Me diz de novo que vamos para o céu, que lá estão todos os que amamos. Mas me diz baixinho, com a certeza de que eu jamais irei questionar. Me ensina de novo os Padre-nossos, as Salve-rainhas, os Santos-anjos, os Credos, me faz decorar os Santos Mistérios para nunca mais esquecer. E canta! Canta com tua voz rouca e velha aquelas cantigas de vó rezadeira, cantigas que falam de sacrário e altar, que contam a vida dos santos que pisaram neste solo impuro que hoje habito, incrédula. Mas esquece que eu me perdi. Calça meus sapatos, aperta o laço do meu cabelo. Me desmancha os cachos com teu pente fino, afaga minha pele com teus tapas, me faz jurar novamente que eu não vou errar de novo. Me acende essas velas e reza por mim tuas rezas de mãe, essas rezas que Deus escuta. As minhas foram silenciadas e não há nada que eu possa fazer a não ser pedir encarecidamente: recolhe-me em teus braços. Apaga meus erros, me traz o chá...


segunda-feira, 7 de março de 2016

Tardia


Chega em hora errada, no final da primavera. Encontra flores murchas e um cheiro de queimado no solo - no qual pisa com força correndo em direção ao centro. Arde a tarde em cem mil sóis, tudo fica vermelho e dói.  Morre no horizonte a última chispa de fogo, senil. É tarde, é ocaso, embora a adolescência não lhe tenha consumido o lume. Resta ainda uma labareda atrasada a abrasar-lhe os pés.  Se, por acaso, antes cativasse, antes colhesse, antes, bem antes, tivesse aparecido. Mas - alarde - agora é tarde. Chegasse antes, teria visto os campos vastos, desocupados. Iria correr infinitamente, colorindo de laranja os registros. Mas agora parte. Para longe, afasta. Fica só o futuro do pretérito do verbo querer: quereria.  Arde a tarde, tardia.