sábado, 9 de outubro de 2010

O que fica

 São poucas as imagens que me marcaram assim, e sempre que relembro o momento, sinto a mesma vibração, o mesmo sentimento atônito que senti diante dessa perspectiva.
Voltávamos do colégio, minha amiga e eu, tínhamos por volta dos 16 anos e éramos amigas de infância, embora já nessa época estivéssemos divergindo em tudo, sempre estávamos juntas, por isso, antes de chegar à minha casa, eu passava na frente da casa dela, desviando-me do caminho, só para podermos conversar mais, rir mais um pouco, porque quando se é adolescente tudo tem muita graça e nada preocupa de mais.
 Era quase verão, beirava o fim de ano, e uma seca tomava a capital paranaense. A rua da casa dessa amiga era de saibro, e os carros apressados faziam subir uma nuvem espessa de poeira, que pintava de marrom as ervas daninhas, tentativas de gramados das entradas das casas e os muros pichados. O gosto de terra que fica na língua quando se fala algo logo após passar algum automóvel, o sol queimando as costas, a dificuldade de enxergar pela claridade que tem o meio do dia, os passos lentos, preguiçosos, a sede, tudo isso ficou marcado. Raramente vemos demonstração de afeto sincero em plena rua, mais raro ainda é alguém se comover com isso.
O vizinho da minha amiga tocava bumbo na igreja, e eu já o conhecia das missas, dos ensaios do coral, sabia que sua esposa estava em fase terminal de câncer, ele sempre a colocava nas intenções, embora nunca falasse sobre o assunto.
Passando pela calçada, desviando do pó, eu os avistei do outro lado da rua estreita: havia uma árvore na frente da casa do casal, fora do muro, na beira da rua, seu tronco bifurcou-se perto do chão, o que permitiu que ali se fizesse um banco, delicadamente á sombra, um repouso perfeito para um dia de sol abrasador. Ele estava sentado nesse banco improvisado pela natureza, e sua esposa magra, o olhar perdido no nada, as mãos postas sobre o colo, sentada na cadeira de rodas com um lenço a enfeitar a cabeça vazia de cabelos, mas que parecia estar cheia de estranhos pensamentos de alguém que sabe que vai morrer em breve; os pés soltos a balançar ao ritmo dos pequenos toques que seu marido dava em seu ombro, ossudo, pele apenas.
Como no bumbo das missas dominicais, as batidas tinham um ritmo triste, olhando para ela como quem quer lembrar-se de algo que se perdeu para sempre, sua feição, diferente dos toques, não parecia triste, havia um sorriso puro brotando daquelas rugas. Alheios ao mundo, pareciam habitar em outra dimensão,  pouco se moveram de suas poses, pareciam nem nos ver. Arrastando uma das mãos e tocando as mãos dela, ainda ritmando com leves toques o seu ombro, começou a cantar. A voz fraca, boba, como se cantar fosse instintivo, como se nada mais adiantasse, a não ser as palavras ritmadas. Ele cantou:

Já foi no morrê do dia
Quando eu vi, com alegria
Dois canarinho gorjeá
Com bicada de ternura
O casá trocava jura
De eternamente se amá

De repente, da gaiada
Aonde tava posada
As avezinha do amô
Surgiu um gavião marvado
Passando o bico encurvado
Na canarinha e levô”
 
Eu conhecia muito bem essa canção, meu pai, a exemplo de um bom caipira, cantava ela para embalar meu sono. Parei para escutar, na hora cena não doía como dói hoje, não era tão triste como parece ser hoje, mas era linda, não tem outra palavra para definir: foi uma cena linda.
Minha amiga riu, achou diferente alguém cantar assim como se o mundo fosse somente dos incoerentes, não enxergou todo o sentimento que estava ali e escorria daquela canção para as mãos unidas, abrandando o pó, o calor, a doença.
Algumas semanas depois, a vizinha veio a falecer. Esses dias, tive a notícia que o percussionista das missas também faleceu. Para asfaltar a rua, a árvore teve que ser cortada.

Ficou a cena.

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