sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Nenhum calçado

Cresci cética. Não culpo meus pais. Cresci descrendo de tudo aquilo a que se põe certa dúvida. 
(Menos de Deus, a quem, por cultura, me foi imposta uma fé sem precedentes)
Desde criança desdenhava dos amiguinhos.
-  Não existem coelhos que botam ovos. Muito menos de cacau - e ria sem graça nenhuma.
-  As fadas, se existissem, não iriam querer esse seu dente amarelo e cariado, dizia eu - para ira das mães dedicadas a fazerem seus filhos felizes com o lúdico. “Lúdico” que é uma palavra feia.
Mas quando o final do ano chegava... aí, a situação ficava um pouco mais séria.
 - Para que essas árvores? De onde tiraram essa ideia estapafúrdia de um velho barbudo com roupas vermelhas entregando presentes nessa miséria de lugar quente?
 E as crianças repudiavam minha atitude de menina que não sabia brincar, diziam que eu não iria ganhar presente se continuasse agindo assim . Curiosamente, não ganhava mesmo.
As colegas mães dizem que devo deixar meu filho sonhar e ser criança contando a ele uma série de lendas e o fazendo crer em coisas absurdas e fantásticas, pois somente assim ele será uma criança feliz. Continuo sendo vilã e o faço dizer aos coleguinhas que, infelizmente, Papai Noel e Bicho Papão são coisas que a sua mamãe inventa para te chantagear.
Disse que não culpo meus pais por esse exacerbado ceticismo. Mentira. Culpo sim.  Lembro que fiquei assim depois do que minha mãe, com sua habitual simplicidade, certa vez me contou:
“Sempre me disseram que o Papai Noel passava na noite de Natal deixando um presente para quem colocava o sapatinho na janela. Eu e meus seis irmãos nunca esperamos o Papai Noel. Como o bom velhinho iria adivinhar que ali moravam sete crianças se não tínhamos nenhum calçado?” 

sábado, 7 de setembro de 2013

Ser finito

Desfaço-me ao compasso do tempo
Mesmo se descontinuo, estou indo
Sou eu dente-de-leão sob o vento
A cada batida dos ponteiros, apenas findo.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Creep


Comigo me desavim,
Sou posto todo em perigo; 
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.
[...]
Que meio espero ou que fim 
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo
Tamanho imigo de mim?




Carrego os traços sórdidos
de uma família de desajustes
Mistura infinda de etnias
Disforme composição
Sobreposição de membros
Tortos formatos semi-humanos
Caminhando pela rua lotada
Risos de escárnio se propagam
Na medida em que o passo aperto.
Marcas salpicadas que populam
A pele crespa em desalinho
Saltam fios rebeldes de cobre
da fronte larga e côncava
E quando me encontro
Por algum motivo, me encontro
Rindo da tristeza de nascer
São sulcos que brotam
Cavas nas maçãs podres da face
E se em pranto, vermelha córnea
Salta-me do crânio - cuidado!-
Quer engolir as pessoas em volta
Do nariz curvo, em sangue e cravos
Escorre a síntese do desprezo
Que corre para a arcada
De dentes amarelos e dispersos
Cobertos por uma massa de lábios
Ressequidos, murmurosos.
Quando em decúbito
Se acumula a pele que sobra
Resquício de gente que nunca foi.
Assim permaneça, o dia em que eu for
Serei lembrada por não haver,
Nem um dia sequer,
Gozado de qualquer beleza de ser.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

O amor em silêncio

"Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos"


Jure não falar de amor – do nosso amor
Talvez o silêncio, “música da alma”, diga mais.
 Não grite nosso amor aos quatro cantos
Deixe em paz a rosa dos ventos

Não pendure as fotos do amor em público
Que
o que não está à venda, não carece de propaganda
Pertence a nós dois e se esparrama pelo chão do lar
Escorre pelas mobílias e impregna tudo que nos cerca

Não macule o caule da árvore com nossos nomes
Deixa que os rebentos exponham o amor que se une
Que os frutos sejam a materialização do sentimento
E que o amor se manifeste entre os tijolos da casa
Que amor seja a liga que os mantém firmes

Não exponha nosso amor com palavras
Que falar é apenas vibrar cordas
E muitos, surdos, céticos, não dariam fé
Não exponha o amor em beijos públicos
Que, em segredo, a intimidade mantém viva a chama

Não ostente a felicidade de sabê-lo.
Guarda o amor, não o manche com versos
Apenas alimenta-o com orações e compreensão.
Coloca o amor num oratório e cultua-o
Que nada é mais sagrado que o verdadeiro amor

terça-feira, 30 de julho de 2013

Açúcara

A pesada xícara de esmalte sobre a mesa. Ferve a água que derrama no fogão.  O pano sobre a estrutura de ferro filtra o líquido que escorre macio, marrom, amargo feito mês de agosto.
E não demora, sobe aquele aroma, é o cheiro das tardes da infância. O paladar bem sabe, logo virá o café. Mas antes, o “açúcara” diz meu pai. É o doce que lhe falta na maneira bruta de lidar com as coisas que ele compensa enchendo o bule com açúcar. E faz o café mais doce que já tomei, me adoçando até a alma - não o tomo por todo, resto. Me sustento sustentando o amor incondicional de família.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

5 de junho

Na manhã que nasceu uma criança
Aconteceu algo na beirada do Paraíso
Onde anjos se acumulavam curiosos
Observando o fenômeno.
O corpo de mãe que era embrulho
Agora era casa, comida e descanso.
E isso, apesar de corriqueiro
Foi aqui, como lá, celebrado.
Logo escureceu o dia. Era junho.
Foi um breve sopro de vida.
Se espantaram os querubins
E vão ter com o Criador:
- Por que, Senhor?
E Ele respondeu com um sorriso
Enquanto abriu as portas do Céu.
Festa! Recepcionam mais um anjo...

Então, no coração de minha mãe
Fez-se uma janela onde venta muito.
- Um vento doído!-
Mais frio quando chega junho.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Capela


Sento-me na paz dos umbrais
da simples construção de madeira
são paredes, teto, chão e vitrais
Local de minha oração derradeira

Cantei sóbria meu último hino
e deixei aqui morrer minha fé
Ficou nestes bancos, neste sino
a dor de se descobrir quem se é

No sacrário de porta reluzente
a luz vermelho sangue ainda brilha
Nas velas cintila a chama ardente
A capela me lembra: ainda sou filha

Quem dera poder reviver esse altar
Seria eu de novo inocente criança:
- “Mãezinha do Céu, eu não sei rezar”
Comungaria “o pão vivo, maná da aliança”

terça-feira, 9 de abril de 2013

Periferia


Ladeiras poeirentas dissimulam tua falta de estrutura. - Ali? Ali não mora ninguém.
Fingem! Por entre uma porção de tijolos e tábuas se escondem as gentes.
Entre valetas e vielas. Não te dizem “favela”. É cidade, é saneada.
Mentem! Tua lama viva que se acumula nas esquinas, nas bocas, nos bueiros, prova: é viva comunidade, resquício de Cortiço.
Ignoram! As gentes se acumulam em coletivos que desviam de buracos e corpos.
Onde se misturam os sotaques, os falares - dos outros - há uma paz calada.
Rezam! Igrejas, e bares, e prostíbulos: uma linha tênue entre o Céu e o Inferno é a minha periferia.
Omitem! São largos terrenos baldios cercados por muros onde descansam os vadios.
Numa rua que sobe, mas nunca ascende, lá pela tarde, se escuta o galo rouco cantando.
Renascem! Todo dia brota uma nova vida onde se afia a faca e se abastece o revólver – é tudo vontade de sobreviver e não deixar barato o descaso.
Vingam! O barulho encobre a voz da suave desgraça de ser parte desse mato incortável da periferia. Gente que é mato.
Matam! E à noite, quando voltam os rostos cansados, vê-se ali a essência que mantém o círculo infinito da vida: uma busca incansável de não se sabe bem o quê. 

domingo, 31 de março de 2013

Trocadilho infeliz


É o carro do sonho que está passando.
Sonhos de nata...
Nada de sonhos!
Quando se está “deitado na realidade”
Porém... Ainda assim
Se planeja, se almeja. Torce-se: que seja!
Amém! O carro do sonho está passando.

Inquieta-se a alma com esperanças
- Sonhos de nata. Doce de leite -
Em vão se tenta dormir.
- É o carro do sonho que está passando -
É o carro! Do sonho que está passando.

O carro do sonho passa.
Devagar.
O tempo do sonho passa.
De vagar por aí canso eu.
E fico a divagar: é rara a calma.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

De infância

São os mesmos olhos!  - e olhando mais de perto a imagem – São esses mesmos olhos! 
Foi o passar do tempo, que não marcou esse olhar do retrato,  que levou de nós as confidências.
E chegou a época em que não mais se ouvia pela casa o guizo das duas crianças correndo. Os pais das duas pequenas já não mais ficavam na sala a compartilhar o orgulho que sentiam das filhas. E isso faz muito tempo...
Antes de todas as fatalidades, quando agarrávamos as bonecas e saíamos a inventar histórias, esses mesmos olhos, profundos, marcantes, percorriam a pequenina casa sem reboco. E sonhávamos coisas pequenas...
 Éramos nós na pobre boneca esquelética a falar  uma com a outra sobre casa, emprego, marido e filhos. E nossas vozes, mal sabíamos, profetizavam nosso próprio futuro. Exceto nossa amizade. Essa ficou esquecida em algum lugar da casinha sem reboco.



sábado, 12 de janeiro de 2013

O Sorriso do Moço

O moço passou por mim
(filha pequena pela mão)
O moço passou por mim.
Eu, parada no jardim,
Juro que fiz uma oração.
As mãos pálidas do moço
(talvez fossem de marfim)

O moço passou por mim
E sorriu seu sorriso breve
Eu nunca fui de sorrir assim
Mas respondi ao gesto leve
E o moço passou por mim.

O moço já não era moço
Na íngreme rua que se esfarelava,
Seus membros de pele e osso
Subiam a rua que não findava.

Sobe a rua, moço!
Olha a Lua, moço!
Sobe voando às terras do Sem Fim
E quando chegar ao Céu, moço,
Sorria para a minha irmã por mim.

(a Leonel e Bruna)